Prólogo Gratuito
A Anomalia
“O Portal não rejeita corpos.
Ele rejeita os espíritos que já se corromperam.”
— Fragmento do Livro das Interfaces, proibido no NeX
Stanton viera buscar respostas que ninguém mais ousava caçar, sob o céu noturno do deserto do Atacama. A areia ressecada parecia engolir o vento, mas seria apenas vento? Ou algo além, uma força que moldava o próprio abismo até que ele se tornasse um peso frio na alma?
Na borda da plataforma de concreto, as botas firmes sustentavam Stanton enquanto ele esfregava o anel de Sara — um tique traiçoeiro que o expunha ali mesmo. Um passo em falso, e o vazio o desfaria.
O ar seco arranhava sua garganta; cada inspiração parecia carregar um sussurro sem palavras, como se o próprio deserto tentasse falar, arrastando segredos antigos sob a poeira.
Nada explicava como ele chegara àquele lugar. À sua volta, sombras formavam contornos que lembravam um complexo de concreto — mas não estavam realmente ali. Como lembranças projetadas no ar, a estrutura parecia vibrar entre o que foi, o que ainda seria, e algo que talvez nunca tivesse existido.
Um canto esquecido da mente se agitou. O solo pulsava sob seus pés, um ritmo quase vivo, antinatural. Ajustou o OmniBrace no pulso – o comunicador fantasma, como o chamavam. A tela brilhou em vermelho, cortando a noite:
Anomalia detectada. Acesso restrito.
Era a terceira vez naquela semana. Os dentes rangeram, a mente dividida entre a ordem de recuar e o impulso visceral de encarar o que despertava ali. No jargão do complexo, “anomalia” significava mais do que falha ou perigo — era um sinal.
Um chamado vindo de camadas ocultas da Terra, puxando-o sem piedade, como se um véu vibrasse entre mundos. Algo lá embaixo — antigo, vivo, negado ao entendimento — o chamava com a certeza de um destino escrito.
O Portal latejava em seus pensamentos. Não era um eco, mas uma presença viva — pulsando sob a terra como uma semente esquecida, ligada a algo muito mais antigo que ele. Contornos verdes-esmeralda tremeluziam nas bordas da memória, nítidos demais para serem apenas sonho, assombrando-o com visões de um limiar proibido — onde matéria e espírito se confundiam.
Ao seu lado, um técnico tremia. Quase invisível até então, ele emergiu das sombras. O uniforme azul, rasgado e manchado de óleo, exalava um cheiro agridoce, denso e perturbador. Olhos opacos fixavam o nada à frente, mas um murmúrio escapou, fraco: — Está ativo. Sempre esteve.
Stanton virou-se, a fala afiada, o coração martelando contra as costelas. — Você já viu isso antes? O técnico hesitou, os dedos trêmulos apontando o vazio. E então, o espaço partiu. Não rachou; dobrou sobre si mesmo, retorcendo o ar em símbolos verdes, formas que a visão simplesmente não conseguia agarrar. O estômago de Stanton revirou. Um deslocamento visceral que o gelou até os ossos.
O técnico cambaleou até um painel que parecia brotar do chão, orgânico e metálico. A luz do OmniBrace tremeu, instável, como se a própria tecnologia vacilasse. O tempo parecia torto. Aquele homem era um estranho, sim, mas suas feições ecoavam. Um reflexo desgastado de alguém dolorosamente familiar.
Ele abriu a boca, mas o mundo explodiu antes que pudesse falar. Um clarão verde irrompeu do subsolo, feroz e vivo, rasgando a escuridão. O técnico foi tragado para baixo. Não houve grito. Seus ossos dissolveram numa poça fumegante, a pele rasgando-se em fiapos negros como papel queimado.
Sara. O nome irrompeu na mente de Stanton, o grito mudo cravado em sua retina. Foi rápido. Lento o bastante para se cravar na alma. Depois, silêncio.
Nada restou. Nem cinzas. Nem traço. Apenas um vazio limpo, perturbador, como se o homem nunca tivesse cruzado o tempo ou existido.
Talvez fosse um truque. Uma ilusão lançada contra ele por algo que observava. Talvez algo ali o visse como peão. Um peão em um jogo imenso que ele mal começava a vislumbrar. O dispositivo vibrou novamente, um som agudo cortando o vazio: Anomalia encontrada. Protocolo negado. A tecnologia tinha sua própria agenda.
Um deslocamento sutil, frio, agitou as sombras remanescentes, gelando o sangue nas veias de Stanton. Então, um murmúrio atravessou o silêncio, vindo de lugar nenhum e de todos os lugares ao mesmo tempo: — Você deixou isso acontecer, Mike.
Não era uma voz. Era a culpa. Pura. Um veneno que o derrubou de joelhos na plataforma fria. Piscou, buscando algo sólido para se agarrar. O concreto refletiu um rosto. Borrado, quase seu, mas distorcido, os olhos vazios o encarando de volta. O vazio parecia consciente. Parecia olhar.
Um riso distante queimou em sua garganta, preso, como se pertencesse a outro. A noite foi engolida pelo clarão verde remanescente.
Paredes de metal ergueram-se da terra queimada. O NeX-111. O bunker esquecido. Não emergia. Desabrochava — como se algo sob a superfície apenas aguardasse que a alma certa o reativasse. Um grito fraco subiu do chão. Insistente. Não sabia se o ouvira antes, se o ouvia agora, ou se ainda estava por ocorrer. O tempo parecia não existir.
Ele tocou o terminal emergente. A tela se torceu, glifos verdes pulsando. Um eco antigo ressoou em sua mente, vindo de um lugar que não era lembrança.
— Já é tarde, Mike — sussurrou uma presença. Não vinha de fora. Estava dentro. Enquanto isso, um dedo esquelético arranhou o vidro do terminal, afiado como um aviso final.
O negrume o puxou. Sem resistência. Sem livre-arbítrio. Apenas a verdade: aquilo sabia seu nome. Sempre soube.
E agora, ele também sabia.
